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Transcender a Letra da Lei: a coragem de transformar pedras em sementes e corações em jardins de fé; confira no artigo Gotas de Amorosidade

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a mulher adultera

Por Pe. Ricardo Geraldo de Carvalho, CSsR

O episódio da mulher adúltera, narrado por João, é um drama teológico que revela a tensão entre a justiça humana e a misericórdia divina. A encarnação de Cristo é um ato de amor trinitário, onde a glória de Deus se manifesta na fraqueza da cruz e na compaixão pelos pecadores. Jesus, ao ser confrontado pelos fariseus e mestres da lei, não se deixa reduzir a um juiz legalista. Em vez disso, inclina-se para escrever no chão – gesto que podemos interpretar como um silêncio eloquente, um convite a transcender a letra da Lei para entrar no mistério do Amor que cura a hipocrisia.

 Gotas de Amorosidade

Somos questionados profundamente com uma temática pautada em raízes humanas, religiosas e políticas: A lei ou a graça? A lei ou a pessoa? A lei ou o amor? Na verdade, precisamos mudar a abordagem e não opor a lei à graça, à pessoa ou ao amor. O próprio São Paulo sugere que a lei é um pedagogo que nos acompanha no caminho para alcançar a plenitude da liberdade no amor: “A Lei serviu de guia para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados pela fé. Agora que a fé chegou, não estamos mais sob o guia da Lei” (Gl 3,24-25).

 

A adúltera do nosso texto transgrediu uma lei, e seus acusadores, de acordo com a lei mosaica, querem apedrejá-la. A condenação e o julgamento desses acusadores têm três pontos fracos essenciais:1. Uma interpretação puramente exterior da lei. É o legalismo, que tanto seduz os seres humanos; 2. Falta de consciência da sua própria transgressão e da sua sombra. Os acusadores condenam na mulher o que rejeitam em si mesmos ou não conseguem assumir; 3. Ignoram a raiz da transgressão da mulher. Por que ela caiu em adultério? Julgam sem conhecer sua história, seu sofrimento, sua solidão.

 

Quando compreendemos que uma lei – humana e justa – está a serviço do amor e do crescimento da pessoa, o aparente conflito entre prioridades da lei ou da pessoa se dissolve.

 

Neste relato, descobrimos duas atitudes extraordinárias de Jesus que podemos aprender e aplicar em nossa vida: 1. Jesus não entra em discussão com os acusadores da adúltera. Ele escolhe outro caminho. Quando uma pessoa está presa em seu ego, em sua raiva ou em uma visão fechada e legalista, discutir é inútil – tempo e energia perdidos. Jesus poupa suas energias para algo melhor. Devemos discernir quando é oportuno dialogar; caso contrário, nos esgotaremos inutilmente; 2. “Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo” (Jo 8,6). A curiosidade nos invade: o que o Mestre escreveu? Os estudiosos não sabem responder.

 

O autor deixa propositalmente esse vazio para que cada um interprete de acordo com suas próprias vivências. Qualquer interpretação feita com honestidade intelectual e moral é válida, pois se soma a outras, aumentando a riqueza, a beleza e a profundidade do texto e da vida.

 

Jesus escreve no chão os nomes dos acusadores. Nomear algo tira sua força, e escrever no chão é uma forma de “deixar ir”, porque o vento apagará os nomes. Jesus não apenas perdoa a adúltera, mas também os seus acusadores.

 

A resposta de Jesus – “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7) – gera um grande desembaraço à lógica do poder religioso. A kenosis (esvaziamento) de Cristo não é apenas um ato de humildade, mas uma revelação radical de que Deus prefere desarmar-se para salvar o inter-humano. Ao escrever no chão, Jesus não apenas evita a armadilha dos acusadores, mas expõe a fragilidade de uma religiosidade que instrumentaliza o outro. Os fariseus e mestres da lei, ao saírem um a um, revelam que a verdadeira Lei não está nos códigos, mas na consciência iluminada pela graça.

 

Podemos fazer um ritual pessoal de cura: Escreva na terra os nomes de quem o feriu, de pessoas que você feriu ou situações dolorosas que o afetam. Fique em silêncio por alguns minutos, contemplando o que escreveu, conscientizando-se da efemeridade da existência e da única força que renova o universo: o amor. Deixe que o perdão surja naturalmente. Agradeça e encerre o ritual com uma oração espontânea. Permita que o tempo ou os elementos naturais apaguem o que foi escrito. Que este gesto simbólico nos lembre: a misericórdia, como Jesus ensina, é a única lei capaz de transformar pedras em pó e corações em jardins.

 

A mulher, reduzida a um objeto de acusação, torna-se símbolo da humanidade ferida pelo pecado. Em Cristo, o pecador não é definido por sua culpa, mas por sua capacidade de ser amado. Quando Jesus diz “Eu também não te condeno” (Jo 8,11), não há indiferença ao pecado, mas uma absolvição que restaura a dignidade. O mandato de Jesus “Não tornes a pecar” não é uma exigência moralista, mas um convite à comunhão com Aquele que, sendo sem pecado, carrega sobre Si o peso da infidelidade humana.

 

A misericórdia é a forma pela qual a verdade divina se manifesta. No episódio, Jesus não nega a Lei de Moisés, mas a cumpre de modo surpreendente: condena o pecado sem condenar o pecador. Isso ecoa a ideia de que a verdade cristã não é abstrata, mas encarnada em gestos que unem justiça e compaixão. Como diz Santo Agostinho: “só permanecem as duas: a miséria e a misericórdia”.

 

Este Evangelho interpela-nos a examinar como lidamos com o pecado alheio e o próprio. Deixemo-nos alcançar pela beleza do perdão, que nos liberta para amar sem medo. A Confissão, como Sacramento da misericórdia, não é um ritual de autoflagelação, mas um encontro com aquele que, inclinado sobre a poeira de nossa humanidade, nos escreve no coração uma nova lei: a do amor que supera toda condenação.

 

O evangelista João revela o mistério da glória de Deus na fraqueza da cruz. Cristo, o Inocente, não veio para ampliar o abismo entre santos e pecadores, mas para unir-se à nossa miséria e transfigurá-la em caminho de ressurreição. Aprendemos, portanto, a inclinar-nos, como Ele, sobre as feridas do mundo, escrevendo com o dedo da misericórdia uma nova história. “Vai e de agora em diante não tornes a pecar” (Jo 8,11), palavra que nos liberta à inteireza da nossa jornada existencial.

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