Por: Pe. Ricardo Geraldo de Carvalho, CSsR
(Mt 16, 13-19) O texto apresentado é fundamental no cristianismo primitivo, pois aborda a identidade de Jesus, que foi o eixo dos primeiros Concílios Ecumênicos da Igreja.
Primeiramente, é essencial perceber que o texto reflete a fé da comunidade do evangelista Mateus: as palavras de Pedro e de Jesus não podem ser tomadas em seu sentido histórico ou literal, não obstante como expressão da fé de uma comunidade.
O valor e a importância textual não dependem tanto da sua historicidade, mas de seu valor simbólico atual e de sua capacidade de gerar uma experiência.
Libertados do “sono dogmático”, recebemos o dom do Espírito para reinterpretar os textos e crescer em compreensão e em autêntica fidelidade, não à letra e sim ao Espírito. Recordamos a advertência do apóstolo Paulo: “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Cor 3,6).
“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13). A pergunta de Jesus aos discípulos em Cesareia de Filipe não é mera curiosidade teológica, mas um convite à adesão existencial. Esta interpelação revela o cerne da fé cristã: um encontro pessoal com Cristo que transforma identidades e missões. Pedro, ao responder “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,16), não formula um dogma abstrato, mas expressa um assentimento vital que redefine seu viver.
A pergunta sobre a identidade de Jesus é a mesma pergunta sobre minha própria identidade: Quem sou eu?
Não podemos responder uma sem a outra. Não podemos entrar numa busca sem relacionar as duas interpelações. A pergunta de Jesus “quem dizem que eu sou?” e o questionamento “quem sou eu?” são indagações que, no cristianismo, esquecemos ou encerramos em conceitos teológicos e filosóficos, perdendo a centralidade do fenômeno.
A pergunta “quem sou eu?” é a inquirição mais importante da existência e de toda vida humana. Perquirição que deve nos acompanhar ao longo da nossa experiência humana.
“Quem dizem que eu sou?”, pergunta Jesus. Urge sairmos dos conceitos e fórmulas aprendidas para dar uma resposta vital, encarnada, efetiva e transformadora.
Como afirma o teólogo basco José Antonio Pagola: “Infelizmente, trata-se frequentemente de fórmulas aprendidas na infância, aceitas de forma mecânica, repetidas levianamente e afirmadas verbalmente mais do que vividas seguindo os passos de Jesus. Confessamos a Cristo por costume, por piedade ou por disciplina, mas vivemos muitas vezes sem captar a originalidade da sua vida, sem escutar a novidade do seu chamado, sem nos deixarmos atrair por seu amor apaixonado, sem nos contagiarmos da sua liberdade e sem nos esforçarmos para seguir sua trajetória”.
Jesus proclama Pedro “feliz” porque sua confissão não vem “da carne e do sangue, mas do Pai que está nos céus” (Mt 16,17). A afirmação do Nazareno sublinha que a fé é dom recebido, não conquista humana. Pedro – o impulsivo que negou Jesus – torna-se “rocha” não por mérito próprio, mas porque acolheu a graça que transfigura fragilidades. Sua autoridade brota da experiência do perdão, não do poder.
A afirmação “sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18) evoca uma Igreja servidora, não piramidal, que vivencia a sinodalidade. As “chaves do Reino” (Mt 16,19) simbolizam não domínio, todavia responsabilidade de “ligar e desligar”: abrir portas da misericórdia e fechar cadeias do legalismo. Logo, reverbera o Concílio Ecumênico Vaticano II: a Igreja é sacramento de libertação, não instituição de controle.
Paulo, o “aborto” (1Cor 15,8), experimenta na estrada de Damasco o que podemos chamar de “ética da resposta”: a graça desperta uma liberdade radical para servir. Se Pedro recebe as chaves, Paulo, por sua vez, proclama: “Para mim, viver é Cristo” (Fl 1,21). Ambos revelam que a missão nasce do amor, não da obrigação.
Pedro – o pescador judeu – e Paulo – o fariseu helenista – personificam a unidade plural da Igreja. Isto refuta toda uniformidade dogmática: Pedro abre-se aos pagãos em Cesareia (At 10); Paulo circuncida Timóteo (At 16,3). A verdadeira fé harmoniza tradição e novidade, a exemplo de uma “árvore com raízes profundas e ramos novos”.
Devemos olhar com criticidade uma leitura reducionista da perícope, Mt 16,18-19, a medida que tenta fundamentar o poder papal. Jesus adverte: “Os reis das nações as dominam, e os que exercem autoridade sobre elas fazem-se chamar benfeitores. Mas entre vós não deve ser assim; ao contrário, o maior entre vós se torne como o menor, e aquele que comanda, como aquele que serve. Pois, quem é maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é o que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22,25-27). A “rocha” significa a fé, não o indivíduo Pedro. A autoridade é serviço aos mais vulneráveis, como mostrou o Papa Francisco: humanizou o papado ao ponto de lavar os pés de pessoas extremamente excluídas da nossa sociedade.
Pedro – crucificado de cabeça para baixo – e Paulo – decapitado – testemunham que a Igreja cresce pelo martírio ético, não pelo poder. Seu sangue regou a “Igreja de Roma”, a qual pode ser interpretada como símbolo universal de resistência: nas periferias, nas prisões, onde a vida é defendida contra “o poder do inferno” (Mt 16,18), ou seja, aonde o cosmos é cuidado “dos ínferos ou inferiores” reino dos mortos e justificado de toda a maquinaria do mau.
Na cena joanina (Jo 21,15-17), Jesus não pergunta a Pedro “crês em mim?”, mas “tu me amas?”. Este é o núcleo da moral cristã: o amor como critério único. Celebrar Pedro e Paulo é assumir suas perguntas: “Quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15): desafia-nos a rever cristologias desencarnadas. “Tu me amas?” (Jo 21,16): Convoca-nos a pastorear, isto é, cuidar dos mais abandonados.
Como Pedro, somos frágeis; como Paulo, imperfeitos. Mas na ética da misericórdia, nossas negações tornam-se lugares de ressurgimento. A promessa – “as portas do inferno não prevalecerão” (Mt 16,18) – é garantia de que, mesmo na “noite escura”, a barca da Igreja avança, impelida pelo Espírito que “estrutura a liberdade”.
Como compreender hoje essa resposta de Pedro e da comunidade de Mateus? Jesus é o enviado, é o Filho do Deus vivo. Ele nos revela o Deus da Vida, que é a própria Vida. Em sua identidade, todos nos encontramos. O que Jesus nos revela é também nossa própria identidade. Somos filhos: Filhos do Deus da Vida. Filhos da Vida que é Deus. Somos – como Jesus – expressão única e original da Vida de Deus neste mundo. O projeto de Jesus foi espiritual, profundamente humano e acessível a qualquer pessoa. Igreja e religião só têm sentido como serviço à espiritualidade aberta e à pessoa humana: um abraço universal.
Portanto, oremos: Deus da Vida, que em Pedro e Paulo revelastes o poder da graça que transfigura fragilidades, fazei-nos Igreja “em saída”. Dai-nos a coragem de Paulo para romper cercas, e a humildade de Pedro para acolher o perdão. Que nosso amor por Cristo se torne serviço aos crucificados da história. Por Jesus, rocha da libertação. Amém.