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O que define uma fé autêntica? Confira o artigo Gotas de Amorosidade, com o padre Ricardo de Carvalho, CSsR

A fé reduzida a ritos sem compromisso com a justiça e a caridade torna-se hipocrisia. Isso ressoa na advertência de Jesus aos fariseus, que praticavam obras visíveis para serem elogiados, todavia negligenciavam a pureza interior (Mt 6,1-6). A autentica conversão exige “rasgar o coração, e não as vestes” (Jl 2,13), como recorda o Papa Francisco, ao destacar que Deus valoriza a coerência entre fé e vida.

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fé autentica

 Por Pe. Ricardo Geraldo de Carvalho, CSsR

O que é uma fé autêntica? A essência da fé não está fundamentada em rituais vazios, mas num coração transformado pela misericórdia. No Evangelho de Lucas (Lc 18,9-14), Jesus contrasta a oração arrogante do fariseu com a humildade do publicano, revelando que a justiça divina se manifesta naqueles que reconhecem sua necessidade de Deus. A verdadeira espiritualidade nasce da interioridade, onde Deus encontra o ser humano em sua vulnerabilidade, alicerçada na consciência da misericórdia divina, que nos liberta para a responsabilidade ética.

 

A fé reduzida a ritos sem compromisso com a justiça e a caridade torna-se hipocrisia. Isso ressoa na advertência de Jesus aos fariseus, que praticavam obras visíveis para serem elogiados, todavia negligenciavam a pureza interior (Mt 6,1-6). A autentica conversão exige “rasgar o coração, e não as vestes” (Jl 2,13), como recorda o Papa Francisco, ao destacar que Deus valoriza a coerência entre fé e vida.

 

Na parábola do fariseu e do publicano, Jesus desvela a armadilha da autossuficiência espiritual. O fariseu, confiante em suas obras, representa aqueles que se consideram justos por cumprir preceitos, mas fecham-se ao mistério da graça. O publicano, porém, reconhece a sua fragilidade e clama por misericórdia. Essa atitude é central, haja vista que a salvação não é conquista humana, mas dom recebido por quem se abre à transcendência de Deus: “Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,14).

 

O gesto do publicano – “não ousava erguer os olhos ao céu” – é um ato profético de despojamento. Mais que humildade individual, trata-se de uma crítica à estrutura social que classificava publicanos como “impuros”. Ao reconhecer-se pecador, ele subverte a ordem religiosa vigente, revelando que a santidade habita na aceitação da humanidade compartilhada. Esse reconhecimento não é passividade, mas resistência: ao negar-se a performar a “santidade” exigida pelo sistema, o publicano desvela a hipocrisia de uma fé que oprime em nome de Deus.

 

A consciência, formada pelo diálogo com a Palavra e a Comunidade, é o espaço sagrado onde discernimos a Vontade de Deus. O publicano, ao confrontar sua realidade, vive essa autenticidade. Já o fariseu, preso em suas conquistas, perde a capacidade da autocrítica.

 

A moral cristã não é um código rígido, mas um chamado à responsabilidade, em que a lei se interioriza como resposta amorosa a Cristo. Esta postura exige coragem para questionar estruturas de poder e reconhecer que “a verdadeira obediência nasce da fidelidade criativa, não da submissão cega”. Ensinamento que devemos aprender para testemunhar contra os horrores que ferem de morte a dignidade humana, pois em certas realidades o legalismo serviu para justificar atrocidades perante à sacralidade da vida.

 

Urge vivermos o evento dialógico, não o monólogo dogmático. A “viva voz do Evangelho” engaja-nos com as múltiplas vozes da Comunidade, especialmente as silenciadas pelo poder social e religioso vigente. Esta atitude reverbera numa “obra de arte aberta”, segundo a qual a verdade emerge do diálogo entre texto bíblico, tradição e contextos contemporâneos.

 

Neste cenário, o grito de contrição vai além do arrependimento formal: “cria em mim, ó Deus, um coração puro” (Sl 50,12). Expressa o desejo de transformação íntima, alinhado à resposta amorosa ao Deus que nos amou por primeiro. A penitência não significa autoflagelação, mas acolhida da misericórdia que restaura, capaz de transformar a fragilidade em graça. Essa dinâmica reflete a ênfase da misericórdia como força histórica, que reconfigura relações pessoais e sociais.

 

A rejeição sofrida por Jesus em Nazaré (Mc 6,1-6) ilustra o escândalo de um Deus que se faz próximo na simplicidade. Devemos enfatizar que a encarnação é revolução ontológica, isto é, revela um Deus que valoriza a humildade, não o poder. O próprio Jesus, “filho do carpinteiro”, desafia os preconceitos dos seus conterrâneos, mostrando que a santidade habita no ordinário da vida. Os nazarenos não reconheceram Jesus em face dos seus pré-conceitos. Corremos também o risco de ignorar Deus que se revela nos pequenos gestos de amor e nas pessoas mais abandonadas.

 

Jesus subverte a lógica religiosa do seu tempo. O fariseu, confiante em suas obras, representa a autossuficiência espiritual que pode se tornar uma idolatria do sistema religioso. Já o publicano, que se reconhece pecador, encarna a humildade hermenêutica, ou seja, a consciência de que a fé não é posse, mas dom. Esse contraste desvela que a salvação não é conquista humana, entretanto acolhida do Deus que se manifesta no rosto do excluído.

 

A mensagem de Lucas 18,9-14 é um antídoto contra o farisaísmo moderno: seja na Igreja, na política ou nas relações pessoais. A justiça divina se revela aos que, como o publicano, entendem que a fé é um encontro de misericórdia, não um prêmio de perfeição: “A liberdade em Cristo exige a escolha fundamental de segui-Lo, colocando-O no centro da vida”.

 

Assumamos, portanto, a autenticidade da espiritualidade, a qual é capaz de libertar-nos da escravidão do legalismo e abrir-nos à surpresa de um Deus que age nas periferias existenciais. Que possamos, como o publicano, reconhecer a nossa vulnerabilidade, transformando a nossa fé em compromisso concreto com a justiça e a compaixão. Que Maria Santíssima, sob o título de Mãe da Soledade, que acolheu o mistério divino na simplicidade de Nazaré, nos ensine a ver Deus nas surpresas cotidianas.

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