“Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” (Lc 13,23). Jesus, como costumava fazer, não responde diretamente, mas convida a pessoa que lhe perguntou a entrar pela “porta estreita”. O que é esta famosa “porta estreita”? Ao longo da história, interpretou-se esta porta como o caminho das virtudes, das dificuldades que é preciso assumir, como a porta do esforço e do compromisso. Em síntese, era uma porta essencialmente “moral”.
Não obstante, a “porta estreita” é a porta da vida. A salvação não é um problema teórico que se reduz a conceitos e doutrinas; esta visão reduzida e parcial levou ao grave problema da desconexão entre fé e vida. Os exemplos são evidentes: desde ditadores e criminosos que comungam tranquilamente aos domingos e assassinam pessoas durante a semana, até a enorme dificuldade de tantos cristãos para traduzir a experiência de Deus no cotidiano e na realidade de todos os dias.
Viver com consciência
Muitas vezes, esta concepção teórica da salvação serviu para tranquilizar e entorpecer consciências. Urge retomar à pedagogia libertadora de Jesus e do Evangelho. Logo, a salvação é uma experiência profundamente ligada à vida, podendo afirmar à integralidade da salvação, segundo a qual há uma união umbilical entre o transcendente e o imanente.
O próprio Jesus, no Evangelho de João, define-se como “a porta”. E o mesmo Evangelho de João associa claramente Deus à Vida: “Eu vim para que tenham vida”, afirma Jesus (Jo 10,10). Deus é Vida e não pode haver experiência de salvação “fora” da vida, ad extra, alienada da finitude e do seu itinerário existencial.
Pode-se inferir que o fenômeno da salvação é a experiência mais profunda da vida e do viver? Alinhar-se com a vida, “ser um” com a vida manifesta a experiência radical da salvação. Compreendemos que a salvação não é um evento futuro, a posteriori, pois não é algo que se deva conquistar ou merecer. Já somos salvos: faz-se necessário descobrir e viver a graça do Deus da Vida. Destarte, neste aforisma reside a compreensão mais profunda da ressurreição.
A ressurreição significa que a Vida é tudo, que nossa existência está acontecendo “dentro” do Mistério de Deus, ad intra, como também havia visto o apóstolo Paulo: “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). A ressurreição vem nos dizer que o Amor não pode morrer e que esse Amor é o que somos, sustenta-nos e gera-nos esperança a cada instante.
Todavia, o que é esta porta estreita? E por que esta porta é estreita? A estreiteza indica nossa dificuldade para nos alinharmos com a vida; nossa rebeldia em face da vida. Neste prisma, denota a crença absurda de que sabemos melhor do que Deus o que precisamos e que a vida deve seguir os nossos critérios. Precisamente, esta porta é o núcleo do momento presente, do “aqui e agora”.
A Vida é sempre aqui e agora; Deus é sempre aqui e agora. Revela-se o Mistério: a eternidade presente no espaço e tempo, Deus “aqui e agora”. Dizia um mestre: “Se não encontras Deus aqui e agora, onde esperas encontrá-lo?” Esta é a experiência maravilhosa, extraordinária e plena da salvação. Assumindo a vida, estamos em Deus e na eternidade.
A mente nos mantém reféns e ancorados no passado, no futuro e em todas as feridas emocionais que nos afastam do Presente. A porta estreita nos convida a sair da compulsão mental, para viver em plenitude. Dizer “sim” à vida, a tudo o que ela nos oferece, aqui e agora. Viver a partir da consciência, da paz e do amor descobriremos que somos o que buscamos: somos Vida, Um com o Mistério, salvos e plenos.
Pois bem, a experiência de plenitude, a vida realizada e feliz está interligada com o atravessar uma “porta estreita”. Paradoxo que nos envolve e nos acompanha e que todas as tradições religiosas e espirituais da humanidade descobriram e viveram. Neste ínterim, o Evangelho afirma: “Asseguro-lhes que se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só; mas se morrer, produz muito fruto” (Jo 12,24) e “Quem encontrar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por mim, a encontrará” (Mt 10,39).
O psicoterapeuta, sociólogo e teólogo espanhol Enrique Martínez Lozano atesta: “A vida é um constante paradoxo. E qualquer pessoa que se aventura pelo chamado ‘caminho espiritual’ é surpreendida pela presença do mesmo em cada passo da marcha. Um paradoxo é uma contradição aparente que, ao ser assumida, resolve-se numa verdade maior: perder e ganhar, o raio de treva, a solidão sonora, a música calada, o vazio pleno, subir é descer, morrer é viver. O paradoxo, que aflora em cada palavra sábia, não é senão reflexo da polaridade do real e da natureza, também polar, do ser humano. E indica-nos que a resolução adequada não passa por suprimir um dos polos, mas por abraçar ambos numa unidade maior, no nível não-dual”.
A “porta estreita” é assumir o paradoxo da existência e aprender a abraçar a vida em sua totalidade. Assumir o paradoxo e trabalhá-lo é essencial para o desenvolvimento psíquico e espiritual. Para tanto, o britânico Andrey Harvey – estudioso das religiões e professor das tradições místicas – assevera: “Justamente as coisas que desejamos evitar, negligenciar e abandonar resultam ser a ‘matéria-prima’ da qual procede o verdadeiro crescimento”.
Também indica a necessidade de disciplina. A tradição cristã fala de ascese. Há um perigoso equívoco quanto à vida espiritual e seu crescimento. Acreditamos que a vida espiritual cresce naturalmente, por pura graça, sem necessidade de disciplina e prática. Reduzimos a vida espiritual aos sentimentos, sem perceber que estes últimos não têm consistência nem solidez. Nesta dimensão notamos o paradoxo em ação: se é certo que o que somos já está dado e já o temos, não é menos certo que a descoberta e o desenvolvimento do que somos precisam do nosso compromisso, de certa disciplina e de certa prática. Disciplinamo-nos e praticamos não para alcançar algo que não temos, mas para viver em plenitude o que já somos.
Podemos compreendê-lo a partir da vivência do amor: quando, em Cristo, descobrimo-nos amor e amados, não podemos fazer outra coisa senão “amar”. Nosso amor converte-se em nossa mais autêntica pregação e evangelização; manifestação celebrativa do próprio amor.
A porta estreita
A “porta estreita” indica também a presença consciente. Aprender a estar presentes é um exercício diário. Crescer em consciência é uma verdadeira “porta estreita”. Muitas vezes somos vítimas da inconsciência e da identificação com o pensamento; agimos pela inércia e vivemos simplesmente reagindo aos estímulos externos. Tudo isso nos afasta da nossa essência, do nosso ser autêntico. Sair da identificação com a mente – o falso “eu” – é uma prática que requer atenção. Cada vez que nos surpreendermos em estado de inconsciência, podemos entrar pela “porta estreita”: estar presentes para nós mesmos, ser mais conscientes.
A porta fechada do dono da casa (Lc 13, 25) é a porta da inconsciência. Esta porta da Vida abre-se apenas para os que estão conscientes, abertos e disponíveis. Abrir-se conscientemente à Vida. Não basta uma adesão externa e superficial: “Comemos e bebemos contigo, e tu ensinaste em nossas praças” (Lc 13, 26). Para entrar na plenitude da Vida, aqui e agora, não basta um conhecimento racional e um assentimento intelectual: “Crês que há um só Deus? Fazes bem. Os demônios também creem e, no entanto, tremem” (Tg 2,19).
A experiência da plenitude da Vida, do êxtase da Vida, é presenteada a todo aquele que abre conscientemente a porta do coração. O êxtase da Vida abre-se a todo ser humano que aceita e assume o dom da Vida em sua totalidade.
Não há barreiras de religião, de cultura, de raça para experimentar a maravilha da Vida, a beleza infinita do Amor: “virão muitos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, para ocupar seu lugar no banquete do Reino de Deus” (Lc 13,29).
Portanto, a “porta estreita” de Jesus, a “porta estreita” que é Jesus (Jo 10,9), na realidade é uma porta infinita, sempre aberta. Vê-la e adentra-la converte-a necessariamente em “estreita”: é nosso caminho desde a plenitude e para a plenitude. Nosso caminho que já é meta.