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Gotas de Amorosidade: A hospitalidade

É preciso também acrescentar atenções humanas e espirituais: durante a visita, tentamos concentrar nossa atenção na história e nas experiências do hóspede; ele deve sentir-se no centro; ele recebe o lugar de honra; ele é servido primeiro.

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A hospitalidade

Lc 10,38-42
SER PARA (AJUDA) E ESTAR COM (ESCUTA): ECOS DA INTIMIDADE DIVINA NO EU AUTÊNTICO
Deus visita as pessoas: Yahweh visita Abraão, Jesus visita Marta. Ele é bem recebido. E, no entanto, parece que ainda podemos aprender algo aqui, precisamente sobre a qualidade do nosso serviço.

Pois, de que maneira somos realmente hospitaleiros? A hospitalidade, afinal, tem níveis diferentes. Para fazer um visitante sentir-se em casa, nós o cercamos com toda sorte de atenções. Atenções materiais, em primeiro lugar: providenciamos descanso, comida e bebida. Mas isso, aparentemente, não é suficiente. É preciso também acrescentar atenções humanas e espirituais: durante a visita, tentamos concentrar nossa atenção na história e nas experiências do hóspede; ele deve sentir-se no centro; ele recebe o lugar de honra; ele é servido primeiro.

Mas podemos ir ainda mais longe e considerar nosso hóspede como se fosse o próprio Deus. Essa é a visão mais profunda, a visão de fé sobre a hospitalidade: ver a visita de um hóspede como um dom divino para nós.

Tanto Abraão quanto Marta, nas duas histórias, parecem estar principalmente ocupados em providenciar comida e bebida. Mas a atenção do Senhor vai além desse anfitrião ou anfitriã agitados. Ele tem olhos para aquela outra mulher que fica em segundo plano: Sara (Gn 18, 9-10a), Maria (Lc 10,42). Elas recebem do Senhor uma notícia alegre: “Sara terá um filho” e “Maria escolheu a melhor parte”. Isso mostra que Jesus aprecia algo além da hospitalidade agitada. Ele destaca a escuta silenciosa e humilde da sua Palavra, o ouvir atento ao que Ele quer nos dizer e perguntar, na quietude, através de sua amizade e aliança.

Destarte, o evangelista Lucas convida-nos de forma vibrante, revolucionária e inspiradora a ouvir a palavra de Jesus. Em face da cultura machista da época, o texto nos apresenta a figura de duas mulheres, as quais são irmãs: Marta, que serve, e Maria, que escuta. O encontro desenvolve-se em grande fraternidade, conforme desejamos que aconteça no ceio da nossa Igreja: convivências dialógicas, cordiais, humanizadas e humanizadoras segundo as quais podemos sentir, em Comunidade, o Amor Redentor do Deus da Vida.

Lucas nos diz que Maria estava “sentada aos pés” de Jesus: é a atitude típica do discípulo. Jesus abre as portas do discipulado às mulheres e lhes dá a mesma dignidade e importância que os homens tinham: atitude revolucionária. Maria escolheu ouvir Jesus. Não sabemos o que Jesus tinha a lhe dizer. Sabemos apenas que isso a tocou tão profundamente que, alguns meses depois, quando o Nazareno estava novamente hospedado na casa dela e Marta, desta vez com seus discípulos, ela derramou um frasco de bálsamo de nardo muito caro sobre os pés Dele. Aquele gesto de amor encheu toda a casa com um aroma maravilhoso. Ouvir verdadeiramente gera amor e cura as situações de violência.

Marta serve, trabalha, se movimenta. No fim, ela se queixa: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda que ela me ajude” (Lc 10,40). Por que reclamamos tanto? Parece que a reclamação faz parte do DNA humano, evidenciando o ego. O coração da reflexão nos diz que o nosso verdadeiro ser, pleno do Amor, não se coloca a reclamar.

Muitas vezes interpretou-se este texto como uma oposição entre ação e contemplação, ou como uma demonstração da superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa: “Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10,42). A visão por trás dessa interpretação é a visão mental ou dualista da realidade.

Podemos nos abrir, a partir do silêncio, para outra visão, denominada mística, que descobre a Realidade Una, que mergulha suas raízes no Ser. Ação e contemplação são duas dimensões da mesma pessoa. A Vida integral, plena, é feita das duas realidades. Não há verdadeira ação sem contemplação, e não há verdadeira contemplação que não se expresse em ação amorosa. Logo, não há Ser que não se expresse e não há Amor que não seja concreto.

Jesus mostra, com ternura, à Marta a inquietação e nervosismo que ela gera em sua vida. Não é de forma alguma uma crítica à ação e ao serviço. A vida de Jesus foi toda destinada a servir, ao ponto do evangelista Marcos identificar a própria pessoa e vocação de Jesus com o serviço: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).

Mestre Eckhart – místico alemão do século XIII – interpreta o texto de Marta e Maria de forma vanguardista e original: para ele, Marta “vale mais” que Maria porque, depois de ouvir, já está agindo. Sua interpretação tem enorme peso, ainda mais vinda de um dos maiores místicos e contemplativos da história.

De onde vêm a inquietação e o nervosismo? Da desconexão com nosso ser autêntico, com nossa essência. Surgem da crença mental que identifica o que somos com nossos pensamentos e emoções. O que verdadeiramente somos é paz e tranquilidade. “Uma só coisa é necessária” (Lc 10,42): viver em conexão com o que somos, com nossa verdadeira identidade.

Neste ínterim, contemplação e ação se complementarão de forma harmoniosa e encantadora. Centrados na paz que somos (contemplação), surgirá a ação amorosa adequada, que será expressão dessa mesma paz que somos e que vivenciamos. Por sua vez, a ação amorosa e correta nos levará de volta à sua fonte silenciosa e eterna.

A contemplação é ação, pois é puro amor e gratuidade; é a ação mais pura. Sentados em silêncio e quietude, agimos profundamente a partir da eternidade e plenitude do Ser. A ação é contemplação, como expressão eficaz, única e original do amor que somos e nos constitui. Nas palavras da teóloga e escritora alemã Dorothee Sölle (1929 – 2003): “Não preciso me agarrar a mim mesmo, pois sou sustentado. Não preciso carregar o peso, porque sou amparado. Posso sair de mim e me entregar”.

Portanto, há dois princípios muito importantes na vida de todo inter-humano, os quais o teólogo espanhol José Maria Castillo (1929 – 2023) sintetiza belamente: “Marta é a ‘ajuda’. Maria é a ‘escuta’. Marta representa o ‘ser para’. Maria representa o ‘estar com’. Marta é ‘serviço’. Maria é ‘companhia’. Todos os seres humanos necessitam, em suas vidas, de ambas as coisas, ou seja, aquilo que representa Marta e o que representa Maria”.

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