(Lc 16,19-31 ) O conhecido relato – chamado do “rico epulão” – é exclusivo de Lucas. “Epulão” vem de “epulo”, que era o encarregado de presidir os banquetes romanos. O texto nos abre os olhos para um dos grandes males da sociedade e para um perigo sempre presente na vida do ser humano: a indiferença. O que Jesus quer nos mostrar com a parábola é a profunda indiferença do rico para com o pobre. Não se diz que o rico agia com maldade, simplesmente e terrivelmente salientou-se sua completa indiferença para com o pobre.
Não é um detalhe menor a questão dos nomes: O homem rico não tem “nome” e, no mundo bíblico, mais precisamente na cultura judaica estar sem nome é não ter rosto, nem identidade, não existir. O pobre, por outro lado, tem nome: Lázaro, que significa “Deus ajuda”. Neste contexto, eclode para nós a icônica pergunta: onde reside o verdadeiro existir? Aonde, realmente, somos?
O dramaturgo e romancista irlandês George Bernard Shaw (1856 – 1950), asseverou: “O maior pecado contra nossos semelhantes não é odiá-los, mas ser indiferente a eles: esta é a essência da desumanidade”. Pois bem, sabemos que a indiferença é uma das realidades mais dolorosas. Muitas vezes a indiferença dói mais do que um ato hostil ou um conflito. Ser indiferente é “não ver” o outro, negar a existência de diferentes pessoas. A indiferença esvazia nossa humanidade, deixa-nos sem rosto, sem relações humanas fecundas. Destrói-nos como seres humanos porque vai justamente contra o que somos, Compaixão. A compaixão é o amor atento a outrem: é o amor que justamente se dá conta de que o outro existe, reconhece sua existência, assume sua existência e percebe que – em seu sentido mais real e profundo – “o outro sou eu”.
Neste ínterim, cabe esclarecer outro conceito de indiferença para evitar mal-entendidos. É o conceito muito usado na tradição cristã e especialmente na espiritualidade inaciana. Quando se fala em “indiferença” nesta perspectiva, não nos referimos à indiferença que o evangelho condena como anti-humana. Podemos compreender melhor esta indiferença se a associarmos a equanimidade, isto é, a capacidade de manter a constância face às circunstâncias inesperadas: “ser indiferente” é viver profundamente aberto à Vida, aceitando o que vem e deixando ir o que parte. É a indiferença/equanimidade da pessoa radicalmente livre e que vive em perfeita unidade com a Vida. Não é uma indiferença por falta de amor, mas pela plenitude do amor. A pessoa toca a essência do seu próprio ser e, descobrindo no amor a sua própria fonte, descobre que o mesmo amor é a fonte de tudo.
Se tudo é amor, pode-se viver na indiferença e equanimidade emocional e afetiva: o que vem é amor e vem por amor, e o que parte é amor e parte por amor. Este princípio aplica-se às realidades que percebemos como “interiores” (pensamentos, sentimentos e emoções) e “exteriores” (pessoas, situações e acontecimentos). Em sentido estrito esta indiferença/equanimidade é a outra face da compaixão. Haja vista que a compaixão é a percepção lúcida e radical da unidade que tudo sustenta, abraça e entusiasma.
A indiferença do rico no texto evangélico é a indiferença do ego, do indivíduo que se desune do outro e do mundo. É a indiferença daquele que confunde sua verdadeira identidade com seu ilusório “eu”, a indiferença da cegueira.
A compaixão – o eixo da mensagem evangélica – é a percepção da Vida Una e do Amor Uno de onde emerge toda forma de existência. Aprender a ver é o núcleo da transformação. Porque “ver” é “compreender” e a compreensão leva ao amor. Sem este ver, até os milagres e os sinais são inúteis e não transformam ninguém: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão” (Lc 16, 31).
Portanto, para vermos a inteireza admirável, graciosa e potente do horizonte existencial – olhar holístico acerca da vida –, devemos assumir o silêncio e a quietude, que nos permitem ver a ilusão do ego e da separação; conduzindo-nos ao lugar da unidade, à Casa Comum, à Fonte. O Silêncio interior nos leva ao abismo de luz e amor que somos. Não é o abismo de indiferença e solidão que o rico cria e percebe: “entre vocês e nós abre-se um grande abismo” (Lc 16, 26). E sim o abismo infinito do Amor que é a plenitude na qual todos nos encontramos e somos.